sexta-feira, agosto 27, 2004

Quem é professor e quem é aluno?

Quando comecei esse blog, minha intenção declarada era evitar o tom confessional, de "Meu querido Diário" que os blogs invariavelmente têm. Quero usar este espaço para discutir e argumentar, nem que seja - como o é na maioria das vezes - com poucas pessoas, sobre temas que me interessam ou preocupam. Hoje eu abro uma exceção para essa regra, mas não acho que seja um desvio assim tão grande. O assunto, acho, merece nota.

Como muitos de vocês sabem, sou professor de Direito; Direito Internacional, para ser mais preciso. Profissionalmente, é a única coisa que faço. Não sou advogado (apesar de ter passado no Exame de Ordem, nunca tirei a carteira da OAB), não sou Promotor, Juiz, Consultor, nada disso. Posso sê-lo um dia, mas não hoje. Sou apenas professor.

Não considero dar aulas apenas como meu trabalho. Ganho meu sustento com essa atividade, é verdade, mas prefiro encará-la como a minha profissão, entendida no sentido denotativo de "declaração ou confissão pública de uma crença, uma religião, um sentimento, uma tendência política, uma opinião ou modo de ser" (Houaiss). Não sabia disso quando pisei pela primeira vez numa sala de aula para lecionar, mas foi nesse ambiente que descobri a minha vocação. Posso dizer que sou um dos poucos felizardos que faz o que gosta e é pago por isso.

Essa minha vocação é alimentada por um ideal. Sou o que se pode chamar de felizardo. Pertenço à última geração de filhos de classe média que teve acesso a uma educação de qualidade com preço acessível, o que me permitiu estudar num ótimo colégio (o Arquidiocesano); sempre tive acesso a - bons - livros, que soube aproveitar por uma inclinação natural que, se me afastava do convívio social normal da idade, foi extremamente útil no meu desenvolvimento intelectual (era um nerd, para resumir). O resultado foi que, sem grandes sacrifícios, fui aprovado na Fuvest e cursei Direito na São Francisco. Dos muitos que tentaram, eu fui um dos 450 que entraram lá. Podia ter pago uma faculdade (talvez não a PUC...) mas fiz o curso de graça, como todos os meus colegas, precisássemos ou não.

Quando comecei a dar aulas em Sorocaba, dei-me conta da diferença da minha situação para a da maioria dos meus alunos. A maioria vinha de colégios públicos e tinha uma formação escolar, na melhor das hipóteses, deficiente; para complicar, quase todos trabalhavam em período integral, o que toma o tempo do estudo necessário e deixa o aluno cansado à noite. Ainda assim estavam lá estudando Direito. E pagando - caro - para isso, enquanto na São Francisco, a maioria privilegiada estuda de graça. Quando me dei conta disso, percebi que, se não podia mudar a realidade, pelo menos podia retribuir o que tinha aprendido de graça dando a eles aulas como as que eles teriam se estivessem na USP.

Como diria o Arquiteto, no Matrix 2, a perfeição do meu plano só foi igualada por seu retumbante fracasso. A razão é simples de explicar: eu me esqueci de perguntar para eles se eles queriam aulas como as da USP e se era disso que eles precisavam. Enquanto eu achava que estava fazendo o melhor possível para eles, a opinião deles, salvo raras exceções, era totalmente oposta. Para a maioria, eu era um babaca arrogante que achava que só ele tinha razão. Não falo isso por suspeita: num questionário de auto-avaliação que eu fiz com eles, essas mesmas expressões apareceram várias vezes.

Isso me fez repensar tudo do zero. Não sem muita ajuda, venho nos últimos dois, dois anos e meio, tentando mudar esse quadro. Mudei o jeito de dar aulas, alterei os pontos do programa, o enfoque das matérias, entre outras coisas. Mais importante: passei a conversar com os alunos, ouvir o que eles dizem; só assim consegui ter uma idéia do que eles precisam, e de como eu posso ajudar. E eu busco ajudar no que posso, sempre andando na corda bamba entre a rigidez e o assistencialismo, duas posições que rejeito, a primeira por ser geralmente injusta, a segunda por menosprezar quem é ajudado.

Os resultados têm aparecido. O maior deles, certamente, veio na semana retrasada: dia 12 de Agosto, quinta-feira, fui um dos professores homenageados na Colação de Grau da primeira turma de meio de ano da Uniso. Naquela placa gravada está a indicação de que eu estou no caminho correto. De certo modo, ela representa para mim o certificado de aprovação na primeira etapa do meu aprendizado de docência, concedido por aqueles por quem mais me interessa, pessoalmente, ser reconhecido como bom professor, palavra que também se origina de "profissão"...

A esses alunos, que foram meus professores, como os alunos antes deles, os meus atuais alunos e os que certamente virão no futuro estudar comigo, eu só posso agradecer. Infelizmente perdi a chance de comemorar com eles no baile de formatura, mas mais festivo ainda será ver cada um tomando o seu caminho e, na medida de seu esforço e sua sorte, seja na área do Direito ou não, crescendo e se realizando. Meu desejo é poder ter contribuído um pouco para isso, nem que seja para retribuir o que eu aprendi com eles: como ser cada vez mais humano.

sábado, agosto 21, 2004

Robôs e Direitos Humanos

Há mais de 10 anos, um livro me caiu nas mãos com ótimas recomendações: Eu, Robô, de Isaac Asimov. Minha surpresa foi perceber que não se tratava de um romance, mas de uma coleção de contos. Devorei o livro em menos de uma semana. A leitura rápida teve seu custo, todavia: não me lembro de quase nada das histórias, apenas das famosas Três Leis da robótica, que deveriam tornar segura a convivência do homem com as máquinas, mas cujos desdobramentos inesperados segundo uma mente cibernética eram o mote de cada uma das histórias do livro. Lembro-me ainda de outra coisa: gostei do livro como gostara de poucos que tinha lido até então.

Como boa parte das adaptações de livros para o cinema, "I, Robot" mantém uma graaaande distância do original. Falando francamente, fora o título, as tais Três Leis e os nomes de algumas das personagens, a fita não tem nada a ver com a obra original. Se seguir o original ao pé da letra não garante um bom filme, afastar-se também não faz da fita automaticamente uma bomba; o fato é que o filme é bom. CGI de primeira, boas cenas de ação, as usuais frases espertinhas, em suma: o conteúdo normal dos blockbusters estadunidenses de hoje em dia (o que desgraçadamente inclui, também, uma dose quase insuportável de merchandising). Tudo isso faria um filme assistível, mas tem um outro ponto que me fez gostar do filme. Uma fala, para ser preciso, dita pelo vilão do filme nos minutos finais, que esclarece a razão por trás do comportamento dos robôs NS-5.

***SPOILER ALERT***
O TEXTO ABAIXO REVELA O FINAL DO FILME
LEIA POR SUA PRÓPRIA CONTA E RISCO
***SPOILER ALERT***


O filme disfarça bem seu tema central. Passei todo o tempo achando que, por trás das cenas de ação, existia um fiapo de discussão sobre o que é que nos distingue, seres humanos, dos robôs quando eles fazem tudo o que nós fazemos. Muito pertinente, embora seja inconsistente do ponto de vista da lógica, é o diálogo entre Sonny e Spooner, quando este pergunta se o robô poderia compor uma sinfonia ou pintar um quadro, e ouve a pergunta cruel como resposta: E você, pode? O erro lógico só ressalta a mensagem por trás desse ácida troca de farpas: um robô não teria como se tornar humano, mas o ser humano cada vez mais se parece com uma máquina. Resta a questão do que nos faz "humanos", a resposta parecendo estar na sensibilidade, na capacidade de sentir emoções e deixá-las, por vezes, sobrepujar nossa racionalidade friamente lógica.

Ocorre que, no final do filme, quando VIKI revela as razões pelas quais aparentemente voltou-se contra os humanos, a questão filosófica mais importante do filme, na minha opinião, aparece cristalina: VIKI defende-se da acusação de violar a Primeira Lei - não ferir humanos - afirmando que chegou à conclusão que o único jeito de proteger os homens do perigo seria protegendo os homens de si mesmos por meio da eliminação de sua liberdade, inclusive eliminando os seres humanos que criassem perigos para a humanidade. O problem ético, aí - e esse é um problema atualíssimo - é o quanto a liberdade do homem coloca em risco a sua própria existência e segurança, e o quanto essa liberdade tem de ser restrita se se quer garantir esses dois últimos objetivos.

Essa é uma questão importantíssima. Coloca-se, por exemplo, no cerne do problema criado pelos avanços da tecnologia (até onde determinadas tecnologias devem ser desenvolvidas?), do desenvolvimento econômico (qual deve ser o limite do desenvolvimento para preservar o meio-ambiente?). Coloca-se, principalmente, e é para isso que eu queria chamar a atenção, no dilema da "necessidade" que alguns apregoam de se limitar direitos humanos em nome de uma maior segurança social.

É esse o discurso do governo dos EUA, que afirmam que as chamadas liberdades civis colocam em risco a tal "guerra contra o terror". É com base nesse discurso que centenas de prisioneiros são mantidos presos em Guantánamo sem que se saiba nem quem são eles, nem do que são acusados, em flagrante violação de compromissos internacionais assumidos pelos próprios EUA. É com base nesse discurso que as autoridades policiais estadunidenses têm hoje um amplo espaço de manobra fora de qualquer possibilidade de controle por parte do judiciário.

Mas isso não é privilégio da matriz. Aqui mesmo, no Patropi, esse problema tem grande relevância. É ele que está por trás do malsinado RDD (regime disciplinar diferenciado), que permite que um preso fique até um ano praticamente em confinamento solitário, que seus encontros com seu advogado sejam gravados etc. Está presente, também, quando queremos entrar em um dos muitos edifícios comerciais que exigem que sejamos identificados por foto, ou nos condomínios residenciais nos quais cada canto é esquadrinhado por uma câmera de segurança.

O quanto a liberdade deve ser restrita para que se garanta a segurança?

Não é minha intenção discutir esse problema aqui. Me falta tempo e conhecimento para trabalhar esse tema a fundo. Quero apenas ressaltar um aspecto do problema, sugerido pelo filme, que não pode deixar de ser levado em conta quanto se toma uma posição diante desse dilema: a quem caberá essa decisão? Quem será o garantidor de nossa segurança? Levado um pouco adiante, a pergunta se torna: quem vigia os vigilantes? E esse ponto normalmente é esquecido por aqueles que entendem que devemos restringir liberdades em favor da segurança.

No filme, seria um cérebro positrônico que busca, de uma maneira que seria bem qualificada como "fanática", garantir a integridade pessoal dos seres humanos. O fato de ele querer, em princípio, o bem da humanidade, não garante que a humanidade perceba ua atuação como um "bem"; pelo contrário, é vista como uma forma de aprisionamento.

No mundo real, quando alguém reclama uma redução de liberdade em função de maior segurança, geralmente toma por evidente que o responsável por essa redução será alguém bem intencionado e que não abusará desse poder (pelo menos contra aquele que faz essa reclamação). O problema é que essa certeza é falsa. A mais recente prova dessa falsidade foi a revelação dos abusos em Abu-Ghraib, cometidos justamente pelo exército do país que se apresenta como o defensor da liberdade. Acima do controle de qualquer instância, quem garante que o detentor do poder de controlar nossas liberdades não vai abusar dele?

A continuação desse raciocínio me faria defender a importância do conceito de estado de direito na sociedade moderna. Mas vou parar por aqui, apenas com a sugestão...

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