segunda-feira, dezembro 08, 2003

De tirar o chapéu... ou a Cartola.

(antes que alguém tire conclusões apressadas, esse segundo post sobre música não quer dizer que o meu blog só tratará desse assunto. É pura coincidência, ou então sinal de que ando prestando mais atenção nisso ultimamente...)

No quesito música, sou um cara bem eclético. Uma vasculhada nos CDs que levo no carro para me distrair nas incontáveis viagens São Paulo-Sorocaba-São Paulo pode revelar supresas, como dois títulos dos Racionais MCs (o Sobrevivendo no Inferno - o melhor disco deles, IMNSHO - e o Nada Como Um Dia Após o Outro Dia), dividindo o espaço com o Winelight do Grover Washington Jr., enquanto no player está tocando a trilha do Sociedade do Anel... Tirando os breganejos (Daniel, Leonardo e o diabo a quatro) e os grupos de pagode e axé, minha CDteca aceita qualquer coisa, de MPB ao punk, do clássico à disco.

Ultimamente, porém, tem um CD que não me sai do aparelho: o segundo álbum do Cartola, editado por uma tal de Discos Marcos Pereira, que encontrei sem querer numa baciada das Lojas Americanas por incríveis R$ 9,90.

Antes, um pouco de história: Angenor (assim mesmo, com "n") de Oliveira (11/10/1908 - 30/11/1980), nascido no Catete, mudou-se aos 11 anos para o Buraco Quente, um bairro no morro da Mangueira. Estudou pouco, completando apenas o primário, e foi trabalhar como pedreiro, onde ganhou o apelido Cartola porque sempre usava um chapéu-coco para proteger os cabelos dos respingos de cimento. Em 1928 funda com seu amigo Carlos Cachaça e outros sambistas do morro o Bloco dos Arengueiros (por causa das confusões que arrumavam), que no ano seguinte é rebatizado como Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Descobriu que podia ganhar dinheiro vendendo seus sambas, e forneceu muito material para Francisco Alves, Silvio Caldas, Araci de Almeida e Carmen Miranda nos anos 30. Com isso arranjou certa fama, não muita por causa do forte preconceito, mas o suficiente para que músicos de renome, como Villa Lobos, subissem o morro para conhecê-lo e aprender com ele.

Segundo reza a lenda, a morte de sua esposa Deolinda o teria feito se afastar do meio artístico - inclusive da Escola de Samba que ajudara a fundar - por mais de 10 anos. Só voltou à música quando, em 1959, o jornalista Sérgio Porto, o genial Stanislaw Ponte Preta, depois de muito procurá-lo, encontrou-o em Ipanema trabalhando como lavador de carros e vigia noturno; espantado de ver aquele talento desperdiçado, propôs-se a ajudá-lo a recomeçar a carreira, levando-o para cantar na rádio Maytink Veiga e arrumando-lhe um emprego no jornal Diário Carioca. Nessa segunda fase, já vivendo com Dona Zica, sua companheira até o final da vida, Cartola deu o grande impulso para a popularização do samba no Brasil, ao fundar o Zicartola, um restaurante/casa de shows que teve vida curta, mas que pôs a jovem bossa nova em contato com o samba do morro.

Grava seu primeiro disco em 74, com 66 anos - lançaria apenas mais três discos-solo (em 76, 77 e 79). Foi assunto de um especial da Rede Globo em 77, e o sucesso de sua participação num show com João Nogueira o leva a fazer shows em várias cidades brasileiras. Em 1978 muda-se da casa verde-e-rosa no morro da Mangueira para Jacarepaguá e, na época em que lançava seu último disco, descobriu o câncer que viria a matá-lo pouco mais de um ano depois. Nunca ficou rico com música, apesar das maravilhas que criou e que ajudaram muitos outros artistas a vender muitos discos, e no final da vida sobrevivia de um salário de contínuo no Ministério da Indústria e Comércio.

Chega de história. Quem quiser saber mais, vale checar a biografia do Cartola. É um dos livros na minha lista de "preciso ler".

Não sei sobre os outros discos (não vai demorar para comprar todos), mas neste disco Cartola é melancólico. Dá até para compará-lo com o Lupicínio Rodrigues, o rei da dor-de-cotovelo. Ele canta a saudade de um amor que não volta mais:

"Bate outra vez / Com esperanças o meu coração / Pois já vai terminando o verão / Enfim
Volto ao jardim / Com a certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres voltar / Para mim
Queixo-me às rosas / Que bobagem! as rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti
Ah! Devias vir / Para ver os meus olhos tristonhos / E quem sabe sonhar o meus sonhos / Por fim"
(As Rosas não Falam)


Depois, descreve a dor do amor perdido e a esperança de que isso passará, e a inutilidade de se destruir por amor:

"Nada consigo fazer quando a saudade aperta / Foge-me a inspiração, sinto a alma deserta
Um vazio se faz em meu peito / E de fato eu sinto em meu peito um vazio
Me faltando as tuas carícias / As noites são longas e eu sinto mais frio
Procuro afogar no álcool a tua lembrança / Mas noto que é ridícula a minha vingança
Vou seguir os conselhos de amigos / E garanto que não beberei nunca mais
E com o tempo essa imensa saudade que sinto se esvai"
(Peito Vazio)


Propõe-se a perdoar, de novo, o amor que lhe abandonou:

"Tive que contar a minha vida / A esta mulher fingida / Que me faz sofrer
Essa dor que tanto me crucia / Roubou toda a alegria / Do meu viver
Pode ser que ela ouvindo os meus ais / Volte ao lar para viver em paz
Esta malvada nem sabe o mal que fez / Mas não faz mal eu lhe perdôo outra vez
O meu coração vive reclamando noite e dia / Por isso eu peço que ela volte para a minha companhia"
(Não Posso Viver sem Ela)


Alerta (amaldiçoa?) uma mulher que está a deixá-lo (não consigo me decidir se essa mulher seria uma namorada ou uma filha):

"Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora de partida / Sem saber bem o rumo que irás tomar
Preste atenção, querida / Embora eu saiba que estás resolvida / Em cada esquina cai um pouco a tua vida / Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar seus sonhos tão mesquinhos / Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida / De cada amor tu herdarás só o cinismo / Quando notares estás à beira do abismo / Abismo que cavaste com seus pés"
(O Mundo é um Moinho)


E depois descreve a expectativa do reencontro com um amor antigo:

"Ah! Essas cordas de aço / Esse minúsculo braço / Do violão que os dedos meus acariciam
Ah! Esse bojo perfeito / Que trago junto ao meu peito / Só você, violão, compreende porque perdi toda a alegria
E no entanto, meu pinho / Pode crer, eu adivinho / Aquela mulher até hoje está nos esperando
Solte seu som da madeira / Eu, você e a companheira, à madrugada iremos para casa cantando!"
(Cordas de Aço)


E finalmente canta - não sem certo exagero - sua maior paixão, a Mangueira, que é identificada com o próprio Morro.

"Habitada por gente simples e tão pobre / Que só tem o Sol que a todos cobre / Como podes, Mangueira, cantar?
Pois então saiba que não desejamos mais nada / À noite, a lua prateada, silenciosa, ouve nossas canções
Tem lá no alto um cruzeiro onde fazemos nossas orações / E temos orgulho de ser os primeiros campeões
Eu digo e afimo que a felicidade aqui mora / E as outras escolas até choram invejando a sua posição
Minha Mangueira, és a sala de recepção, Aqui se abraça inimigo como se fosse irmão"
(Sala de Recepção)


Reparem no uso do português, no vocabulário, na simbologia que ele usa para descrever emoções. A tirada das rosas, a comparação do violão com o corpo da mulher, do mundo com uma mó, são todas figuras ricas, para mim tão bonitas quanto a do chão de estrelas, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa (gravada pelo Silvio, pelo Nelson Gonçalves, pela Elizeth Cardoso e - pasmem - pelos Mutantes!). Junte a melodia - violão, cavaco e flauta, na maioria das vezes - e a voz calma e tranquila do Cartola, e têm-se canções que se pode dizer perfeitas.

Canções, perfeitas, feitas por alguém que estudou apenas até a quarta série, ganhou a vida como pedreiro, lavador de carros e vigia noturno. Tudo bem que na época o português era muito melhor falado do que é hoje, mas isso não consegue, por si só, explicar como canções desse tipo, de tamanha sensibilidade e qualidade, surgiram numa favela no Rio. A genialidade, parece, desafia explicação. O que me leva a duas conclusões, uma a base da outra:

1) Sensibilidade e talento não escolhem lugar ou classe social para aquinhoar determinadas pessoas, donde...
2) O Brasil deve estar perdendo milhares de talentos (talvez alguns até do porte de um Cartola) por permitir a marginalização e exclusão de uma imensurável multidão de pessoas em favelas, periferias, penitenciárias etc.

Ouvir um disco do Cartola, hoje, e refletir sobre não apenas a música maravilhosa mas também as circunstâncias que a geraram, deveria ser obrigatório nesses nossos tempos de "apartheid" social, em que nossas cidades estão claramente sendo divididas em dois mundos estanques, incomunicáveis, em que as crianças nascidas em famílias de classe média ou acima estão sendo ensinadas a ver as de classe pobre e miserável como ameaças, em que estamos condenando quem não pode pagar por ensino de qualidade a não ter como aprender o necessário para seu completo desenvolvimento a não ser com extraordinário esforço e, o mais grave no meu ver (e que será objeto de um próximo post), em que a maioria da população prefere esquecer as suas responsabilidades (que não são apenas do Governo) pela criação de uma enorme massa de crianças e adolescentes não-inseridos na sociedade - para quem as desvantagens da inclusão social como trabalhador honesto remunerado com salário-mínimo são infinitamente piores do que a sua "exclusão" através da participação na criminalidade organizada, aí incluído o custo da grande probabilidade de morte prematura - e advogar pela segregação, desta feita penal, daqueles que já nasceram e cresceram segregados, pela simples e monstruosa falha de toda a sociedade em lhes dar uma melhor perspectiva de vida.

Sobre Cartola, Nelson Sargento (outro papa do samba de raiz) disse: "Cartola não existiu. Foi um sonho que tivemos." Tendo ouvido apenas um álbum gravado por Cartola, eu acho fácil concordar com ele. Infelizmente, do jeito que as coisas vão, é um sonho que acho que dificilmente sonharemos novamente...

No final das contas, o mundo é realmente um moinho, mas no Brasil de hoje ele não tritura apenas sonhos e ilusões, mas também pessoas.


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