segunda-feira, dezembro 01, 2003

Maria Rita

No final dos anos 70, o já consagrado Stephen King, autor de Carrie e O Iluminado, entre dezenas de outras histórias menores, resolveu testar sua própria capacidade de atrair público para suas histórias. Talvez questionando se seus livros eram tão bons quanto os milhões de leitores o sugeriam, ou se as vendas deviam-se principalmente ao fato de a capa de suas obras estampar "Do Mesmo Autor de Carrie" ou "Do Mesmo Autor de O Iluminado", o Mestre do Horror resolveu publicar alguns livros sob o pseudônimo de Richard Bachman. Rage, de 1977, The Long Walk, de 1979, Roadwork, de 1981, The Running Man, de 1982, e Thinner, de 1984, não encontraram nas livrarias uma recepção calorosa como as outras obras assinadas pelo autor. Ficaram longe das listas de mais vendidos, foram lidas por pouquí­ssima gente, e ninguém cogitou levá-las para o cinema. Em 1984, Steve Brown, empregado duma livraria de Washington, encasquetou que um era o outro e foi atrás de provas de sua suspeita, encontrando, nos arquivos da Biblioteca do Congresso, antigos registros de copyright dos textos de Bachman em nome de King. Com a publicação de um artigo sobre o episódio no Washington Post, terminara a experiência Richard Bachman; todavia, o grande público americano e mundial descobriu, de uma hora para outra, que existiam 5 obras de seu autor de horror favorito que ainda não haviam sido lidas. As quatro primeiras histórias foram reunidas numa coletânea - que foi sucesso de vendas - e a quinta se tornou um romance de sucesso, listado entre os mais vendidos nos EUA. Posteriormente, em 1987, The Running Man virou filme, estrelado pelo atual Governator Arnold Schwarzenegger.

O que nos diz esse relato? Lançados sob um pseudônimo desconhecido, os livros de Bachman naufragaram nas livrarias. Uma vez descoberta a verdadeira identidade do autor, viraram best-sellers, como tudo o que o King fazia e faz até hoje. Se a experiência significa alguma coisa, é provar que o nome do King, sozinho, é capaz de fazer um livro se tornar campeão de vendas. Mas será essa a única conclusão que se pode tirar disso? Eu li todos os livros de Bachman e gostei muito de todos; The Long Walk é excelente, The Running Man é infinitamente melhor do que o filme e o Thinner (traduzido como A Maldição do Cigano) é um livro eletrizante. Que meu gosto não seja o padrão mundial de qualidade literária, vá lá, mas certamente esses textos não eram porcarias insalváveis. Ainda assim eles encalharam desde o lançamento e venderam horrores quando se descobriu quem era o autor verdadeiro...

A questão que se coloca é: o que faz de um produto - um livro, no caso, um sucesso? Minha teoria (e eu não conheço nada de marketing ou publicidade) é que um livro faz sucesso quando ele parece valer a pena o tempo que vamos gastar lendo-o. Isso não significa que ele vá realmente valer a pena, pois é uma impressão prospectiva, feita em relação a um evento futuro. Se ela se comprova, ficamos satisfeitos e, eventualmente, queremos mais; se não, podemos até terminar o livro por desencargo de consciência ou curiosidade, ou então largá-lo sem terminar, mas já teremos comprado o livro, que é o que conta para a editora. Qualquer que seja, pois, a nossa opinião real sobre o livro, ela não influirá na decisão de compra, que é feita sobre uma expectativa. Pode, todavia, influir sobre a decisão de compra de outras pessoas, na medida em que propagamos nossa opinião para outros potenciais compradores do livro e afetamos sua decisão de compra.

Quando os livros de Bachman foram lançados, eles não tinham nenhum meio de fazer os leitores acharem que seu tempo seria melhor gasto com eles do que com outros livros, e por isso mesmo não venderam muito. Quando se descobriu o nome verdadeiro do seu autor, esse instrumento surgiu: "o King é o Rei do Horror", "todo livro do King é best seller" etc., essas concepções prévias sobre a obra do King fizeram com que esses livros, de uma hora para a outra parecessem que sua leitura valia a pena e por isso mesmo estouraram nas vendas. A sua qualidade intrínseca, porém, não mudou; eles continuaram sendo os mesmos livros de sempre, bons livros, na minha não tão modesta opinião. Mas parte da crítica os rebaixou justamente por terem vendido apenas por terem estampado o nome de Stephen King.

Corte para o Brasil em 2003. 21 anos após a perda de uma de suas maiores cantoras, que deixou um vazio que ainda não foi devidamente preenchido, eis que a sua filha resolve se lançar na carreira de cantora, revivendo, por um daqueles milagres da genética que o homem tanto se esforça para entender e reproduzir, a voz e os trejeitos da mãe de tal forma que, para os que a viram nas primeiras vezes, seu ato se assemelhava a uma sessão espírita. Menina bonita, se bem que longe dos atuais padrões atléticos e/ou bulímicos de beleza feminina, voz poderosa e bem trabalhada, repertório escolhido a dedo, misturando música de festa com climas intimistas (e, em cada canção, uma reflexão ora mais ora menos explícita sobre a sua situação de filha/irmã gêmea de mito), Maria Rita encanta.

Fui ver seu espetáculo no DirecTV Music Hall, falecido Palace, em Moema, ontem de noite. Três musicos e um performer (o fantástico percussionista Da Lua, um show a parte) a acompanhá-la, cenário e iluminação simples, até óbvios.

Casa lotada.

Não, lotada é pouco. Ingressos esgotados há mais de semana, gente na porta perguntando quem tinha ingresso extra para vender, o show de Maria Rita, mais do que uma apresentação ao vivo de uma boa cantora, é um happening. Lá dentro, histeria completa. Palmas efusivas quando ela entra no palco, tímida, descalça. Canta três músicas antes de falar com a platéia e parece divertir-se com o papel de Mestre de Cerimônias, pela primeira vez no comando de uma massa de pessoas. Alguns espectadores mais empolgados gritam elogios, gente assovia, flashes espocam a toda hora apesar da proibição de câmeras no recinto. Atrás de mim, algumas mulheres esforçavam-se para acompanhar Maria Rita em todas as músicas, o que fazia eu ter de me concentrar para ouvir a voz da cantora e não as delas para satisfazer a minha curiosidade: a voz dela é mesmo igual à da Elis?

Tinha 8 anos e passava férias em Itanhaém, se nao me falha a memória, quando a Elis morreu. Nunca a ouvi cantar ao vivo e pouco ouvi de suas músicas (Águas de Março, O Bêbado e o Equilibrista e Dois Para Lá, Dois Para Cá são algumas das poucas que me lembro dela) mas a sua voz, ainda que gravada, é marcante. E a da filha soa igual, o que, somado a algumas expressões do andar e do dançar, realmente materializa no palco a memória que se tem dela. Às vezes, a coisa arrepia.

Para mim, que mal ouvi no rádio (ouço basicamente CBN no carro) A Festa, nunca ouvi seu CD e nem vi seu DVD, e fui ao show apenas porque ela é "A filha da Elis", era o que eu queira ver. Surpreendi-me, além disso, com uma boa cantora, um repertório legal (mas que eu não ouviria repetidamente), que parece ter um grande futuro pela frente. Da mãe, mesmo, só faltou o extremo sentimento que todos dizem que ela transmitia no palco, ao interpretar e não apenas cantar as músicas. Maria Rita tem muita técnica, e por vezes até deixa passar um sentimento na canção, mas têm-se a impressão permanente de que ela está fazendo tudo o que foi ensaiado, direitinho, sem permitir que o improviso deixe aparecer a sua inexperiência.

Para quase todo o resto do público, todavia, isso deve ter passado despercebido. O que se via era uma celebração total. Marisa Monte demorou anos para dominar de maneira tão absoluta um público; outras ótimas cantoras, como Mônica Salmaso, Ana Carolina, para citar só quem eu me lembro de cabeça, até hoje lutam sem consegui-lo; uma infinidade de outras ótimas cantoras nem público têm, além dos frequentadores dos bares onde cantam... Maria Rita, contudo, nem bem lançou o primeiro CD (o segundo está no forno, pelo que ela disse no show), tem no currículo uma participação num show do Milton Nascimento (no qual dividiu o palco com uma cantora que dizem ser mais talentosa do que ela, mas que ainda é desconhecida, inclusive por mim...) e em shows esporádicos no Supremo Musical em SP, já comanda multidões. Recepção do público como essa eu só tinha visto nas peças da Marília Pêra, que tem décadas de estrada construindo sua reputação e dando inúmeras razões para o público aplaudí-la de pé - algo que no Brasil virou praxe nas nossas platéias servis que a todos aplaudem de pé, talvez por educação... Maria Rita, ainda que cantasse Parabéns a Você, seria aplaudida de pé. Ela já tinha ganho os aplausos antes mesmo de cantar.

O que me traz de volta aos livros do Richard Bachman. O que faz um livro, ou uma cantora, se tornar um sucesso? É a qualidade intrínseca do que ele (ou ela) é, ou aquilo que esperamos que ele (ou ela) seja? Mais do que isso, será que aquilo que esperamos que o livro (ou a cantora) seja afeta o que nos pensamos a repeito dele (ou dela)? Será que ler um livro do Richard Bachman antes de saber que ele é o Stephen King nos fará julgá-lo diferentemente de lê-lo após a descoberta? Será que as pessoas que se esgoelavam no show, algumas até histéricas, se tivessem recebido uma fita demo de uma tal Maria Rita, desconhecida e filha de Maria Ninguém, teriam a mesma reação que tiveram ao ouvi-la sabendo-a filha de Maria Alguém?

Infelizmente, de velhos sabemos que experiências socias não podem ser realizadas em laboratório, logo nos resta tentar interpretar o que ocorre, e imaginar possíveis cenários para interpretá-los depois. A verdade, infelizmente, nós nunca saberemos... E nem a Maria Rita, que diz que luta para se desvencilhar da imagem da mãe mas a cita repetidamente no palco, em fala e em canção e em expressão corporal. Talvez ela tenha um dia que gravar um Cd só com versões de clássicos da Elis, para que depois passem a ouvi-la como Maria Rita e não como Maria filha de Maria Alguém... Enquanto isso, seus CDs vão vender, seus DVDs vão vender, suas entrevistas vão ser disputadas a tapa, mas a gente nunca saberá por completo porque que eles vendem.


Em Tempo: As explicações do próprio S.King para a criação de R.Bachman não batem exatamente com a minha, mas também não batem umas com as outras... No seu site oficial, na seção FAQ, ele diz que teria criado o pseudônimo para poder burlar a regra do "1 livro por ano apenas"; já no segundo prefácio à coletânea Bachman Books, publicada num fansite, ele afirma que R.Bachman foi um meio de encontrar um ponto de vista e uma voz um pouco diferente da dele ao escrever. Depois de descoberto, King usou a experiência de ter um pseudônimo como material para escrever The Dark Half, na qual o alter-ego de um escritor toma vida e começa a matar e a pôr em risco a própria vida do seu "criador" - um bom livro de horror, por sinal, que virou um filme mediano, com o Timothy Hutton no papel principal, dirigido pelo lendário George Romero.

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