sexta-feira, abril 02, 2004
Sobre Piratas e Teorias
Numa das matérias que estou cursando para acumular os créditos necessários para o Doutorado, tive a felicidade de topar com um texto muito legal e que me fez pensar acerca de uma notícia que vi hoje na rede.
O texto é de um autor chamado Kenneth Waltz, professor de Relações Internacionais em Berkeley, nos EUA. O texto foi tirado do seu livro "Theory of International Politics" (1979), que tem tradução disponível em português e, graças à Amazon, parte do trecho exato ao qual me refiro pode ser lida na Internet. Não posso afirmar que concordo com todas as opiniões dele a respeito das relações internacionais (para os versados, ele é um realista), mas esse excurso introdutório sobre o que são leis e teorias me parece irretocável.
Waltz basicamente diz que Leis (não entendidas no sentido jurídico, fique claro, mas no sentido mais próprio das ciências exatas) são proposições que estabelecem a relação entre dois fatos, A e B, em que A representa um ou mais variáveis independentes e B, uma variável dependente. Se a relação entre A e B é invariável, temos uma lei absoluta (um exemplo sendo a Lei da Gravidade: Algo que sobe [proposição A] sempre desce [proposição B], no qual a primeira é uma variável independente e a segunda, dependente da primeira). Porém, podemos ter uma lei que represente uma relação que não é invariável, apesar de ser razoavelmente constante, lei essa que será chamada probabilística, que assim fica melhor esquematizada: "Se A é, B tem a probalidade X de ser".
O interessante na exposição de Waltz é que, enquanto a constatação da existência das variáveis é uma questão empírica, de comprovação pura e simples de fatos, a relação entre eles é uma questão de imaginação, de criatividade, pois não pode ser confirmada empíricamente a não ser quando dessa relação, a A não se siga B. Por isso, essa relação, que é no fundo a própria explicação de por quê B segue, com probabilidade X, a A, pode ser mudada sem que B deixe de seguir, com probabilidade X, a A. Assim, desde que o mundo é mundo as coisas lançadas para o alto voltavam ao chão, mas as explicações para isso mudaram; para citar apenas duas posições distintas, veja-se a explicação do movimento em Aristóteles e em Newton.
Teorias, apesar de serem algo mais complexo, não se diferenciam muito das Leis, pois na verdade buscam estabelecer relações entre as Leis, de tal maneira que - especialmente quando se trata de leis probabilísticas - a previsão de fatos que são objetos de relações com várias outras variáveis independentes possa ser feita com maior grau de certeza. Como diz o próprio Waltz: Teorias explicam Leis. Assim, observando que todo corpo que sobe, cai, bem como observando que um corpo em movimento desacelera proporcionalmente ao atrito da superfície em que se desloca, podemos relacionar as duas leis numa teoria sobre o movimento dos corpos.
Por que todo esse blá-blá-blá terminológico? (Tocha, você ainda está lendo isso? 8^D ) Por causa de uma notícia que recebi hoje via Terra - Informática. Segundo ela um estudo demonstrou que a troca online de arquivos de música (MP3) não prejudicou as vendas de CDs, mas em determinados casos pode até ter impulsionado essas mesmas vendas.
O que o nosso conhecimento comum (e o da RIAA, ao que parece) estabeleceu? Temos dois fatos: A, existe troca online de arquivos de música na rede e B, as vendas de CD têm caído de forma sensível nos últimos anos. Qual a relação estabelecida entre os fatos: Se houver troca de arquivos de música, as vendas de CDs vão cair. Uma relação, diga-se de passagem, que tem sido confirmada pela experiência, com cada vez mais gente trocando arquivos na rede e cada vez menos CDs sendo vendidos.
O artigo (disponível em PDF) propõe uma nova interpretação para isso, negando a associação feita entre os dois fatos empiricamente constatados. Para os autores, um deles da Harvard Business School, outro da Universidade da Carolina do Norte, textualmente: "Downloads have an effect on sales which is statistically indistinguishable from zero, despite rather precise estimates. Moreover, these estimates are of moderate economic significance and are inconsistent with claims that file sharing is the primary reason for the recent decline in music sales." (traduzindo: Downloads têm sobre as vendas um efeito que é estatisticamente indistinguível de zero, mesmo em estimativas razoavelmente precisas. Além disso, essas estimativas são de importância econômica moderada e são inconsistentes com alegações de que o compartilhamento de arquivos é a principal razão do recente declínio nas vendas de música). Em suma, dão uma cacetada na argumentação usada pela RIAA (Recording Industry Association of America) para justificar sua campanha de perseguição quase terrorista aos usuários de redes P2P.
Segundo os autores, outras condições econômicas teriam mais impacto na queda de vendagens, como a concorrência com outros meios de entretenimento (videogames, DVDs etc.) e a própria rejeição às gravadoras causadas pela perseguição aos usuários das redes P2P, ao passo que a queda das vendas foi tão sensível justamente porque nos anos 90 elas foram impulsionadas pelo fato de que muitos consumidores trocaram suas coleções em vinil por CDs. Mas mais importante do que isso foi a conclusão a que chegaram com uma pesquisa de campo cujos resultados comprovam que o impacto da troca de arquivos, longe de ser negativo - na verdade, é quase nulo - pode em certos casos ser positivo - em CDs populares, cada 150 downloads aumentam as vendas em uma unidade.
Outras conclusões dos autores podem ser lidas no texto. A idéia que eu gostaria de lançar, e ela foi tirada do texto do Waltz, é o quão ideológica pode ser a teorização sobre determinados fatos, quando a escolha dos fatos a serem relacionados através de Leis é absolutamente arbitrária. É fato que podemos estabelecer relações entre fatos que, na realidade, não se relacionam de maneira nenhuma (por exemplo, a noção, errada, de que os raios caem, quando na verdade eles sobem da Terra para a atmosfera). Ainda assim, essas constatações equivocadas podem ter graves conseqüências (lembre-se da caça às bruxas no Séc. XVII/XVIII nos EUA).
Nada, a não ser uma suspeita, nos faz relacionar a troca de arquivos com a queda de vendas de música. Essa suspeita não foi adequadamente provada; pior, tem sido contestada. Apesar disso, processo judiciais têm sido propostos contra pessoas em vários lugares do mundo, pessoas têm sido pressionadas com "cease-and-desist letters" e forçadas a acordos judiciais em que aceitam pesadas indenizações. Além disso, essa "Lei" que o senso comum formulou tem sido a base de uma teoria de espectro mais amplo, na medida em que se relaciona com outras leis, semelhantes, que buscam explicar as causas da queda (que nem existe realmente) na venda de DVDs, de games de computador etc. Enfim, uma teoria que busca demonstrar o risco que toda a circulação comercial de material protegido por direitos autorais está correndo e, num nível mais amplo, que a própria possibilidade de inovação tecnológica e cultural na sociedade estaria sendo periclitada pela fragilização da instituição dos direitos autorais.
Levada a esse nível, uma teoria dessas pode servir, em último caso, para justificar um modelo de concentração de mercado e exclusão de competidores (o P2P pode ser uma alternativa mais econômica para a distribuição de música do que os canais tradicionais que passampor gravadoras), que além disso exclui uma parte relevante do público do acesso à cultura em razão de seu poder aquisitivo (e olha que eu nem falei do problema do xerox de livros em Universidades). Aí a manipulação ideológica a que eu me refiro, pois faz com que pessoas que aceitam a legitimidade do acesso universal à cultura se voltem contra seus princípios para defender, em último caso, os imensos lucros das grandes gravadoras.
Tudo bem que tive acesso a esse artigo no dia 1º de Abril (todo cuidado é pouco hoje em dia com informações encontradas na Internet), e além disso os próprios autores podem ter feito relações entre fatos que nada têm a ver uns com os outros. De toda forma, isso deixa claro a incerteza que reina no nosso mundo complicado quanto às teorias que nos levam à ação. Quanto mais penso nisso, mais acho importante que, antes de acreditar em tudo o que nos dizem, utilizemos nosso senso crítico, que deve sempre estar ligado.
É isso!
O texto é de um autor chamado Kenneth Waltz, professor de Relações Internacionais em Berkeley, nos EUA. O texto foi tirado do seu livro "Theory of International Politics" (1979), que tem tradução disponível em português e, graças à Amazon, parte do trecho exato ao qual me refiro pode ser lida na Internet. Não posso afirmar que concordo com todas as opiniões dele a respeito das relações internacionais (para os versados, ele é um realista), mas esse excurso introdutório sobre o que são leis e teorias me parece irretocável.
Waltz basicamente diz que Leis (não entendidas no sentido jurídico, fique claro, mas no sentido mais próprio das ciências exatas) são proposições que estabelecem a relação entre dois fatos, A e B, em que A representa um ou mais variáveis independentes e B, uma variável dependente. Se a relação entre A e B é invariável, temos uma lei absoluta (um exemplo sendo a Lei da Gravidade: Algo que sobe [proposição A] sempre desce [proposição B], no qual a primeira é uma variável independente e a segunda, dependente da primeira). Porém, podemos ter uma lei que represente uma relação que não é invariável, apesar de ser razoavelmente constante, lei essa que será chamada probabilística, que assim fica melhor esquematizada: "Se A é, B tem a probalidade X de ser".
O interessante na exposição de Waltz é que, enquanto a constatação da existência das variáveis é uma questão empírica, de comprovação pura e simples de fatos, a relação entre eles é uma questão de imaginação, de criatividade, pois não pode ser confirmada empíricamente a não ser quando dessa relação, a A não se siga B. Por isso, essa relação, que é no fundo a própria explicação de por quê B segue, com probabilidade X, a A, pode ser mudada sem que B deixe de seguir, com probabilidade X, a A. Assim, desde que o mundo é mundo as coisas lançadas para o alto voltavam ao chão, mas as explicações para isso mudaram; para citar apenas duas posições distintas, veja-se a explicação do movimento em Aristóteles e em Newton.
Teorias, apesar de serem algo mais complexo, não se diferenciam muito das Leis, pois na verdade buscam estabelecer relações entre as Leis, de tal maneira que - especialmente quando se trata de leis probabilísticas - a previsão de fatos que são objetos de relações com várias outras variáveis independentes possa ser feita com maior grau de certeza. Como diz o próprio Waltz: Teorias explicam Leis. Assim, observando que todo corpo que sobe, cai, bem como observando que um corpo em movimento desacelera proporcionalmente ao atrito da superfície em que se desloca, podemos relacionar as duas leis numa teoria sobre o movimento dos corpos.
Por que todo esse blá-blá-blá terminológico? (Tocha, você ainda está lendo isso? 8^D ) Por causa de uma notícia que recebi hoje via Terra - Informática. Segundo ela um estudo demonstrou que a troca online de arquivos de música (MP3) não prejudicou as vendas de CDs, mas em determinados casos pode até ter impulsionado essas mesmas vendas.
O que o nosso conhecimento comum (e o da RIAA, ao que parece) estabeleceu? Temos dois fatos: A, existe troca online de arquivos de música na rede e B, as vendas de CD têm caído de forma sensível nos últimos anos. Qual a relação estabelecida entre os fatos: Se houver troca de arquivos de música, as vendas de CDs vão cair. Uma relação, diga-se de passagem, que tem sido confirmada pela experiência, com cada vez mais gente trocando arquivos na rede e cada vez menos CDs sendo vendidos.
O artigo (disponível em PDF) propõe uma nova interpretação para isso, negando a associação feita entre os dois fatos empiricamente constatados. Para os autores, um deles da Harvard Business School, outro da Universidade da Carolina do Norte, textualmente: "Downloads have an effect on sales which is statistically indistinguishable from zero, despite rather precise estimates. Moreover, these estimates are of moderate economic significance and are inconsistent with claims that file sharing is the primary reason for the recent decline in music sales." (traduzindo: Downloads têm sobre as vendas um efeito que é estatisticamente indistinguível de zero, mesmo em estimativas razoavelmente precisas. Além disso, essas estimativas são de importância econômica moderada e são inconsistentes com alegações de que o compartilhamento de arquivos é a principal razão do recente declínio nas vendas de música). Em suma, dão uma cacetada na argumentação usada pela RIAA (Recording Industry Association of America) para justificar sua campanha de perseguição quase terrorista aos usuários de redes P2P.
Segundo os autores, outras condições econômicas teriam mais impacto na queda de vendagens, como a concorrência com outros meios de entretenimento (videogames, DVDs etc.) e a própria rejeição às gravadoras causadas pela perseguição aos usuários das redes P2P, ao passo que a queda das vendas foi tão sensível justamente porque nos anos 90 elas foram impulsionadas pelo fato de que muitos consumidores trocaram suas coleções em vinil por CDs. Mas mais importante do que isso foi a conclusão a que chegaram com uma pesquisa de campo cujos resultados comprovam que o impacto da troca de arquivos, longe de ser negativo - na verdade, é quase nulo - pode em certos casos ser positivo - em CDs populares, cada 150 downloads aumentam as vendas em uma unidade.
Outras conclusões dos autores podem ser lidas no texto. A idéia que eu gostaria de lançar, e ela foi tirada do texto do Waltz, é o quão ideológica pode ser a teorização sobre determinados fatos, quando a escolha dos fatos a serem relacionados através de Leis é absolutamente arbitrária. É fato que podemos estabelecer relações entre fatos que, na realidade, não se relacionam de maneira nenhuma (por exemplo, a noção, errada, de que os raios caem, quando na verdade eles sobem da Terra para a atmosfera). Ainda assim, essas constatações equivocadas podem ter graves conseqüências (lembre-se da caça às bruxas no Séc. XVII/XVIII nos EUA).
Nada, a não ser uma suspeita, nos faz relacionar a troca de arquivos com a queda de vendas de música. Essa suspeita não foi adequadamente provada; pior, tem sido contestada. Apesar disso, processo judiciais têm sido propostos contra pessoas em vários lugares do mundo, pessoas têm sido pressionadas com "cease-and-desist letters" e forçadas a acordos judiciais em que aceitam pesadas indenizações. Além disso, essa "Lei" que o senso comum formulou tem sido a base de uma teoria de espectro mais amplo, na medida em que se relaciona com outras leis, semelhantes, que buscam explicar as causas da queda (que nem existe realmente) na venda de DVDs, de games de computador etc. Enfim, uma teoria que busca demonstrar o risco que toda a circulação comercial de material protegido por direitos autorais está correndo e, num nível mais amplo, que a própria possibilidade de inovação tecnológica e cultural na sociedade estaria sendo periclitada pela fragilização da instituição dos direitos autorais.
Levada a esse nível, uma teoria dessas pode servir, em último caso, para justificar um modelo de concentração de mercado e exclusão de competidores (o P2P pode ser uma alternativa mais econômica para a distribuição de música do que os canais tradicionais que passampor gravadoras), que além disso exclui uma parte relevante do público do acesso à cultura em razão de seu poder aquisitivo (e olha que eu nem falei do problema do xerox de livros em Universidades). Aí a manipulação ideológica a que eu me refiro, pois faz com que pessoas que aceitam a legitimidade do acesso universal à cultura se voltem contra seus princípios para defender, em último caso, os imensos lucros das grandes gravadoras.
Tudo bem que tive acesso a esse artigo no dia 1º de Abril (todo cuidado é pouco hoje em dia com informações encontradas na Internet), e além disso os próprios autores podem ter feito relações entre fatos que nada têm a ver uns com os outros. De toda forma, isso deixa claro a incerteza que reina no nosso mundo complicado quanto às teorias que nos levam à ação. Quanto mais penso nisso, mais acho importante que, antes de acreditar em tudo o que nos dizem, utilizemos nosso senso crítico, que deve sempre estar ligado.
É isso!